"O ponto mais chocante do cristianismo é a afirmação de que, quando nos ligamos a Cristo, podemos nos tornar "filhos de Deus". Alguém pergunta: "Mas já não somos filhos de Deus? A paternidade de Deus não é uma das ideias principais do cristianismo?" Bem, em certo sentido não há dúvida de que já somos filhos de Deus. Ou seja, Deus nos trouxe à existência, nos ama e cuida de nós, como um pai. Mas, quando a Bíblia fala que podemos "nos tornar" filhos de Deus, obviamente quer dar a entender algo diferente. E isso nos leva para o próprio coração da Teologia.
Um dos credos diz que Cristo é o Filho de Deus "gerado, não criado"; e acrescenta: "Gerado pelo Pai antes de todos os mundos." Por favor, ponha na sua cabeça que isto não tem nada que ver com o fato de que, quando Cristo nasceu na terra como homem, foi filho de uma virgem. Não estamos falando aqui do nascimento virginal, mas de algo que aconteceu antes que a natureza fosse criada, antes que o próprio tempo existisse. "Antes de todos os mundos" Cristo é gerado, não criado. O que isso significa?
Não usamos mais as palavras begetting e begotten[1] no inglês moderno, mas todo o mundo ainda sabe o que elas significam. Gerar (to beget) é ser pai de alguém; criar (to create) é fazer, construir algo. A diferença é a seguinte: na geração, o que foi gerado é da mesma espécie que o gerador. Um homem gera bebês humanos, um castor gera castorzinhos e um pássaro gera ovos de onde sairão outros passarinhos. Mas, quando fazemos algo, esse algo é de uma espécie diferente. Um pássaro faz um ninho, um castor constrói uma represa, um homem faz um aparelho de rádio – ou talvez algo um pouco mais parecido consigo mesmo que um rádio: uma estátua, por exemplo. Se for um escultor habilidoso, sua estátua se parecerá muito com um homem. Mas é claro que não será um homem de verdade; terá somente a aparência. Não poderá pensar nem respirar. Não tem vida.
Esse é o primeiro ponto que devemos deixar claro. O que Deus gera é Deus, assim como o que o homem gera é homem. O que Deus cria não é Deus, assim como o que o homem faz não é homem. É por isso que os homens não são filhos de Deus no mesmo sentido em que Cristo o é. Podem se parecer com Deus em certos aspectos, mas não são coisas da mesma espécie. Os homens são mais semelhantes a estátuas ou quadros de Deus.
A estátua tem a forma de um homem, mas não tem vida. Da mesma maneira, o homem tem (num sentido que ainda vou explicar) a "forma" ou semelhança de Deus, mas não o tipo de vida que Deus possui. Vamos examinar o primeiro ponto (a semelhança com Deus) em primeiro lugar. Tudo o que Deus criou tem alguma semelhança com ele mesmo. O espaço se parece com ele em sua vastidão; não que a grandeza do espaço seja do mesmo tipo que a grandeza de Deus, mas é uma espécie de símbolo dela, ou uma tradução dela em termos não espirituais.
A vida biológica, que vem da natureza e que (como tudo o mais no mundo natural) tende a se corromper e a decair – de modo que só pode se conservar através de contínuos subsídios dados pela natureza na forma de ar, água, alimentos etc. – é bíos. A vida espiritual, que é em Deus desde toda a eternidade e que criou o universo natural inteiro, é zoé. É certo que bíos tem uma certa semelhança parcial ou simbólica com zoé: mas é apenas a semelhança que existe entre uma fotografia e um lugar, ou entre uma estátua e um homem. O homem que tinha bíos e passa a ter zoé sofre uma mudança tão grande quanto a de uma estátua que deixasse de ser pedra entalhada e se transformasse num homem real. E é exatamente disso que trata o cristianismo. Este mundo é como o ateliê de um grande escultor. Nós somos as estátuas, e corre por aí o boato de que alguns de nós, um dia, ganharão a vida.” (LEWIS, C.S. – Cristianismo Puro E Simples, P.54-56, – Ebook).
Vanderlei Faria
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