quarta-feira, 6 de outubro de 2010

AMOR DE ÍNDIO

21:00 horas: toda a aldeia estava escura naquela noite sem lua. Por causa do dia corrido, resolvera tomar banho àquela hora. Deixei a lanterna ao lado, pendurei minhas roupas no fio do gerador e coloquei-me debaixo da água que descia gostosa da torneira. Xampoo, sabonete e toalha. De repente, enquanto estava no meio do banho, vi um vulto que vinha se aproximando de mim. Vinha com passos curtos, passos escondidos. Não consegui reconhecer, até que falasse comigo:
- Professor, cadê ela, cadê ela? Vi, então, que era Asi, um dos meus alunos mais brincalhões em sala de aula. Gostava de rir, mas, principalmente, de fazer piadas das quais todos ríamos.
- Ela quem?
- Ela, ela, a Marta!
- Sei não, Asi, ela deve estar em casa dormindo. A namorada é sua, é você quem tem que cuidar. Disse para ele, enquanto ríamos.

Marta era filha de um chefe de Posto Indígena e estava passando aqueles meses conosco na aldeia, porque seu pai havia ido a Brasília para uma consulta médica. Marta era parente do cacique da casa em que eu estava, daí ela e sua irmã ficaram conosco na mesma casa. As irmãs Marta e Maria vieram a ser protagonistas de histórias de amor e ódio que abalariam a rotina tranquila da aldeia.

Maria, irmã de Marta, era casada e seu marido estava em São Paulo estudando. Ela começou, então, um namoro com um indígena chamado Zeca. "Maria, mas você não é casada?", perguntei a ela que era dona de uma risada escandalosa e marcante. "Ele não me quer mais não, Professor. Ele foi para São Paulo e me deixou". Era mentira, eu já sabia, o marido tentara voltar mas ela é quem não quis mais ele.
- Professor – disse o filho do cacique – vamos casar o Zeca e a Maria?
- Mas e o marido dela?
- Ela separou. O marido está em São Paulo. O senhor precisa casar o Zeca.
- Por que que EU preciso casar ele?!
- Professor, o senhor é o melhor amigo dele, então o senhor é reponsável pelo casamento. O senhor precisa ir lá na casa dele e falar pro pai dele que o senhor vai fazer o casamento. Daí, o senhor pega a rede dele e tráz pra cá e amarra a rede dele em cima da rede da Maria. Pronto!
"Meu Deus, onde que eu tinha me metido", pensava comigo mesmo. Realmente, Zeca havia se tornado um grande amigo na aldeia.

Zeca é o índio de quem escrevi numa das primeiras histórias dos DIAS ÍNDIOS: ele é o índio que me oferecera a irmã para que eu casasse com ela. Desde então, percebi que mais do que querer casar a irmã dele comigo, o que havia por trás era o desejo de se tornar o meu cunhado. Entenderam a diferença? Assim, a nossa amizade foi muito natural. Mas, daí a fazer o casamento dele, já era algo muito inesperado para mim. Entretanto, graças a Deus, Maria começou a rir da proposta do filho da cacique. Ela não queria casar... queria só namorar. Um namoro perigoso por causa do marido em São Paulo. "Zeca e se ele vier para cima de você querendo tirar satisfação?" Zeca riu e não me respondeu nada. Enquanto escrevo esta história, já sei que Maria está grávida e que os dois já não estão mais juntos. "Zeca, eu vi Maria e ela está grávida. De quem é a criança?" Ele abaixou a cabeça e disse apenas "sei não", desconversando.


Marta, a irmã de Maria, por sua vez, foi pivô de uma situação muito mais complicada na aldeia. Asi casou com Marta, entretanto, o que ele talvez não soubesse é que ela também estava namorando um outro indígena que eu não via muito, porque ele estava de reclusão. Contudo, à noite, os indígenas podem sair para "namorar". As meninas, reclusas ou não, podem namorar. Agora, se os meninos são pegos ou se ficam sabendo que eles já namoraram, instaura-se uma verdadeira crise na aldeia quanto ao processo de amadurecimento e de passagem para a vida adulta, pois a reclusão passa a não ser mais respeitada pelos outros indígenas. Por isso, muitos pais tratam seus filhos homens reclusos a ferro e fogo. Uma reclusão que pode durar até 3 anos e cujo objetivo é ver o filho engordar (as meninas para casarem e os meninos para se tornarem campeões na luta).

Bem, mas, como eu disse, Asi casou com a Marta. E, amarrada a rede, ele foi morar com ela. Todavia, ali, viu-se acender a ira do Adolfo, o indígena recluso que estava namorando Marta escondido. Numa noite, quando o gerador foi desligado e os indígenas começavam a voltar para as suas casas, deu-se a gritaria na aldeia: "Marta, cuidado! Marta, cuidado"! Mas já era tarde, antes que Marta e Asi conseguissem atravessar a aldeia a tempo de chegarem em sua casa, Adolfo a agarrou pelos cabelos e começou a arrastá-la para dentro da casa dele. Marta gritava e se debatia. Asi correu e segurou no braço da esposa e começou a puxá-la para o lado dele. Esta era a cena: Marta, uma linda índia de cabelos negros e cor de jambo, era agora disputada entre dois pretendentes no meio da aldeia sob o céu estrelado do Brasil. Um puxava por um braço e outro a agarrava pelos cabelos. Adolfo, muito mais forte fisicamente que Asi, largou dos cabelos de Marta e avançou para cima de seu concorrente. Enquanto os dois se arrastavam no chão, Marta saiu correndo para dentro da casa dela. Adolfo não se rendeu, empurrou Asi e entrou na casa onde ela entrara e, desamarrando a rede dela, tomou Marta de novo pelos cabelos e a arrastou até a casa dele. E ali se trancou.

O que Asi podia fazer? Os caciques estavam todos na cidade e, ali na aldeia, ninguém podia ou queria falar com Adolfo, que também era filho de cacique e chefe de posto indígena. Situação delicada para todos. Asi levantou-se da areia e entrou em casa. Deitou na rede e ficou ali chorando o choro do macho ferido e impotente. "Professor, estou triste. Estou muito triste", diria Asi depois para mim. Todavia, o que me chamou a atenção foi saber que durante aquela noite, as mulheres da aldeia cercaram a casa do Asi e ficaram rindo dele, gracejando e jogando areia sobre a casa. Isto gerou novo atrito na aldeia. Asi é filho do Pajé e este e sua esposa não gostaram nada do que as outras mulheres haviam feito com Asi.

O fim dessa história? Asi sumiu por uns dias. Ele foi morar em outra aldeia. E a história conturbada de amor entre Adolfo e Marta terminou quando o pai dele voltou à aldeia. Irado pelo filho ter violado a reclusão, o cacique e chefe de posto pegou a rede e as demais coisas de Marta e a expulsou de sua casa, jogando as coisas dela no centro da aldeia para todos verem a sua desaprovação pelo que o filho fez. Naquele mesmo dia, o pai de Adolfo arranjou um barco que levasse Marta embora dali o mais rápido possível. Por fim, restou a Adolfo, depois de tudo, voltar mais uma vez à solidão de sua longa reclusão. (Todos os nomes foram recriados para proteger a privacidade dos indígenas)

Abraços sempre afetuosos de nós mesmos.

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