“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
2. Aqui vemos a absoluta santidade e a inflexível justiça de
Deus.
A tragédia do Calvário deve ser vista de pelo menos quatro
pontos de vista. Na cruz o homem fez uma obra: ele mostrou sua depravação ao
pegar o Perfeito e com “mãos iníquas” [1]
pregando-o no madeiro. Na cruz Satanás fez uma obra: ele manifestou sua
insaciável inimizade contra a semente da mulher ferindo o calcanhar dele.[2] Na cruz o
Senhor Jesus fez uma obra: morreu o Justo pelos injustos [3] para
pudesse nos trazer a Deus. Na cruz Deus fez uma obra: ele exibiu sua santidade
e satisfez sua justiça derramando sua ira sobre aquele que foi feito pecado por
nós.
Que pena humana é capaz ou apropriada para escrever acerca da
imaculada santidade divina! Tão santo é Deus que o mortal não pode vê-lo em seu
ser essencial, e viver. Tão santo é Deus que os próprios céus não são puros aos
seus olhos.[4] Tão santo é
Deus que até os serafins cobriam suas faces com véus diante dele.[5] Tão santo
é Deus que, quando Abraão ficou de pé perante ele, clamou, “Sou pó e cinza” (Gn
18.27). Tão santo é Deus que, quando Jó entrou em sua presença, disse: “Por
isso me abomino” (Jó 42.6). Tão santo é Deus que, quando Isaías teve uma visão
de sua glória, exclamou: “Ai de mim, que vou perecendo porque... os meus olhos
viram o rei, o Senhor dos Exércitos” (Is 6.5). Tão santo é Deus que, quando
Daniel o contemplou numa manifestação teofânica, declarou: “Não ficou força em
mim; desfigurou-se a feição do meu rosto” (Dn 10.8). Tão santo é Deus que nos é
dito: “Tu és tão puro de olhos que não podes ver o mal, e que não podes
contemplar a perversidade” (Hc 1.13).
E foi porque o Salvador estava levando nossos pecados que o
trinamente santo Deus não o contemplou, virou sua face dele, abandonou-o. O
Senhor fez que se encontrasse em Jesus as iniquidades de nós todos: e nossos
pecados estando sobre ele como nosso substituto, a ira divina contra as nossas
ofensas devesse passar sobre nossa oferta de pecado.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Essa era uma
questão que nenhum daqueles ao redor da cruz podia ter respondido; era uma
questão que, ao mesmo tempo, nenhum dos apóstolos podia ter respondido; sim,
era uma questão que havia confundido os anjos no céu, deixando-os sem resposta.
Mas o Senhor Jesus havia respondido sua própria questão, e sua resposta é
achada no Salmo 22.
Esse salmo fornecia a mais maravilhosa predição profética
de seus sofrimentos. Ele abre com as próprias palavras da quarta elocução de
nosso Salvador sobre a cruz, e é seguido por mais soluços de agonia no mesmo tom
até que, no versículo 3, achamo-lo dizendo — “Tu és Santo”. Ele se queixa, não
da injustiça, antes reconhece a retidão de Deus — tu és santo e justo em cobrar
de minhas mãos toda a dívida para a qual me fiz fiador; tenho de responder pela
totalidade dos pecados de todo meu povo e, por conseguinte, ó Deus, és parte
legítima em me golpear com tua espada desperta. Tu és santo; tu és puro quando
julgas.
Na cruz, então, como em nenhum outro lugar, vemos a infinita
malignidade do pecado e da justiça divina na punição desse. Não foi o mundo
antigo coberto pelas águas? Não foram Sodoma e Gomorra destruídas por uma
tempestade de fogo e enxofre? Não foram as pragas enviadas sobre o Egito e
Faraó e seus exércitos afogados no Mar Vermelho? Nesses casos, o demérito do
pecado e o ódio de Deus por ele puderam ser vistos; mas muito mais o é aqui, em
que Cristo é desamparado por ele. Vá ao Gólgota e veja o Homem que é
Companheiro de Jeová bebendo do copo da indignação do Pai, castigado pela
espada da justiça divina, ferido pelo próprio Senhor, sofrendo até a morte,
pois Deus “não poupou seu próprio Filho” [6] quando o
pendurou no lugar do pecador. Eis como a própria natureza antecipara a terrível
tragédia — o próprio contorno do chão se assemelha a um crânio. Eis a terra tremendo
sob a poderosa carga da ira despejada. Eis os céus e o sol fugirem de uma tal
cena, e a terra ser coberta de trevas. Aqui podemos ver a pavorosa cólera de um
Deus que vinga o pecado.
Nem todos os relâmpagos do julgamento divino que foram
liberados nos tempos do Antigo Testamento, nem todas as taças da ira que serão
despejadas sobre uma Cristandade apóstata durante os tempos sem paralelos da
Grande Tribulação,[7] nem todo choro
e lamento e ranger de dentes dos condenados para sempre no Lago de Fogo jamais
deram ou mesmo darão uma tal demonstração da inflexível justiça de Deus e de
sua inefável santidade, de seu infinito ódio ao pecado, como o fez a ira divina
que ardeu contra seu próprio Filho na cruz. Porque estava sofrendo o
horripilante julgamento do pecado, foi desamparado por Deus. Aquele que era o
Santo, cuja própria repulsa ao pecado era infinita, que era a pureza encarnada
(1Jo 3.3), [Deus] “o fez pecado por nós” (2Co 5.21); portanto, ele se curvou
mesmo perante a tempestade de ira, na qual foi mostrado o desprazer divino
contra os incontáveis pecados de uma grande multidão que homem algum pode
numerar. Essa, então, é a verdadeira explicação do Calvário. O santo caráter de
Deus não podia fazer nada senão julgar o pecado, mesmo que fosse achado no próprio
Cristo. Na cruz, pois, a justiça divina foi satisfeita e sua santidade
reivindicada.
pastorvanderleifaria@yahoo.com.br
[1] Nota do
tradutor: Atos 2.23, na tradução direta da King James Version inglesa do autor.
[2] Nota do
tradutor: Gênesis 3.15.
[3] Nota do
tradutor: 1Pedro 3.18.
[4] Nota do
tradutor: Jó 15.15.
[5] Nota do
tradutor: Isaías 6.2.
[6] Nota do tradutor: Romanos 8.32 (Novo Testamento Edições
Paulinas).
[7] Nota do
tradutor: O autor já foi partidário da controvertida teologia dispensacional,
elaborada por J. N. Darby e difundida por C. I. Scofield. Depois se arrependeu,
tanto que escreveu uma obra atacando virulentamente tal ensino, A Study of
Dispensationalism, que pode ser acessada em http://www.pbministries.org/books/pink/Dispensationalism/dispensationalism.htm
. Está nos planos do site Monergismo.com a tradução para o português desse
livro, se nosso Senhor o permitir.
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