“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
4. Aqui vemos a inabalável fidelidade a Deus do Salvador.
O abandono do Redentor por Deus era um fato solene, e uma
experiência que nada lhe deixava senão apoiar-se em sua fé. A posição de nosso
Salvador na cruz foi absolutamente singular. Isso pode ser prontamente visto ao
se contrastar suas próprias palavras faladas durante seu ministério público com
aquelas proferidas na própria cruz. Antes dizia ele: “Eu bem sei que sempre me
ouves” (Jo 11.42); agora ele clama, “Deus meu, eu clamo de dia, e tu não me ouves”
(Sl 22.2)! Antes dizia ele: “E aquele que me enviou está comigo; o Pai não me
tem deixado só” (Jo 8.29); agora ele clama, “Deus meu, Deus meu, por que me
DESAMPARASTE?” Ele não tinha absolutamente nada agora em que descansar senão o
pacto e a promessa de seu Pai; e em seu clamor de angústia, sua fé se torna
manifesta. Foi um brado de aflição, mas não de desconfiança. Deus havia se retirado dele, mas note como
sua alma ainda se apega a ele. Sua fé triunfou segurando-se em Deus mesmo em
meio às trevas. “Deus meu”, diz, “Deus meu”, tu com quem está a infinita e
perpétua força; tu que apoiaste até aqui minha humanidade e, conforme tua
promessa, sustentaste teu servo — Ó, não fiques longe de mim agora. Deus meu,
eu me apóio em ti. Quando todos os confortos visíveis e sensíveis haviam
desaparecido, da invisível proteção e refúgio de sua fé o Salvador se vale. No
salmo de número vinte e dois a inabalável fidelidade do Salvador a Deus fica
mais aparente. Nesse precioso texto fala-se das profundezas de seu coração.
Ouça-o: “Em ti confiaram nossos pais;
confiaram, e tu os livraste. A ti clamaram e escaparam; em ti confiaram, e não
foram confundidos. Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e
desprezado do povo. Todos os que me vêem zombam de mim, estendem os beiços e
meneiam a cabeça, dizendo: Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele
tem prazer. Mas tu és o que me tiraste do ventre, o que me preservaste estando
ainda aos seios de minha mãe. Sobre ti fui lançado desde a madre; tu és o meu
Deus desde o ventre de minha mãe” (Sl 22.4-10).
O próprio ponto em que seus inimigos procuraram levantar
contra ele foi a sua fé em Deus. Escarneceram dele por sua confiança em Jeová —
se ele realmente confiava no Senhor, o Senhor livrá-lo-ia. Porém, o Salvador
continuava confiando ainda que não houvesse livramento algum, confiava ainda
que desamparado por um período! Foi lançado sobre Deus desde o ventre e ainda é
lançado sobre ele na hora de sua morte. Ele prossegue: “Não te alongues de mim,
pois a angústia está perto, e não há quem ajude. Muitos touros me cercaram;
fortes touros de Basã me rodearam. Abriram contra mim suas bocas, como um leão
que despedaça e que ruge. Como água me derramei, e todos os meus ossos se
desconjuntaram; o meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas
entranhas. A minha força se secou como um caco, e a língua se me pega ao
paladar, e me puseste no pó da morte. Pois me rodearam cães; o ajuntamento dos
malfeitores me cercou, transpassaram-se as minhas mãos e os pés. Poderia contar
todos os meus ossos; eles vêem e me contemplam. Repartem entre si os meus
vestidos, e lançam sortes sobre a minha túnica. Mas tu, Senhor, não te alongues
de mim; força minha, apressa-te em socorrer-me. Livra a minha alma da espada, e
a minha predileta da força do cão” (Sl 22.11-20).
Jó tinha dito de Deus “Ainda que ele me mate, nele esperarei”
e, embora a ira divina contra o pecado repousasse sobre Cristo, ele ainda
confiava. Sim, sua fé fez mais do que confiar, ela triunfou — “Salva-me da boca
do leão, sim, ouve-me, desde as pontas dos unicórnios” (Sl 22.21). Ó, que
exemplo o Salvador deixou para o seu povo! É relativamente fácil confiar em
Deus quando brilha o sol, o teste chega quando tudo está em escuridão. Mas uma
fé que não confia em Deus na adversidade tanto quanto na prosperidade não é a
fé dos seus eleitos. Devemos ter fé para vivermos — fé de verdade — se a
tivermos para por ela morrer. O Salvador fora lançado sobre Deus desde a madre,
fora lançado sobre Deus momento a momento durante todos aqueles trinta e três
anos, o que não é de se maravilhar, então, que na hora da morte seja encontrado
ainda lançado sobre Deus. Seus companheiros cristãos podem estar tristes
contigo, podes não mais contemplar a luz da face divina. A Providência parece
olhar com desdém para ti, entretanto, ainda dizes, Eli, Eli, Deus meu, Deus
meu.
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